sábado, 10 de outubro de 2015

Água Doce


(A Gaston Bachelard)

Parece que o mar, ao espumar em minha pele,
Levou docemente meu sexo em revoada de peixes.
Seres marinhos habitaram meu nome, campos de trigo e de sonhos.
Tudo era devaneio, vontade esquecida, névoa de cardume anoitecido.
O esquecimento da espuma que chicoteava meu dentes, minhas vísceras em morada diurna,
Onde habitam Homens, Deuses e Heróis, era um caminho para a noite.
Via-se contos de viajantes de velhos cargueiros, netunianos.
Em seres marinhos a espuma escondia toda a peste que habita a minha alma.
Junto ao líquido doce e feminino de teus lábios, escorria agora um pouco de areia sóbria.
O cheiro da água estava presente, era-se água, podia-se vestir corpo de água, ter olhos de água escura.
A água anoitece, teus sonhos vegetais estão suspensos até o amanhã.
Esperamos que o sol desbrave noites inteiras e mares salgados, 
Esperemos que traga a luz na nossa língua materna.
Esperemos o Sol como deus que embala nossos corpos de olhos fechados.
Não se necessita abrigar passados, mas o tempo está também nas águas.
O tempo traz as marés, aquele líquido profundo, petroleiro, saturnino, obscurecido.
Há todo o esquecimento da água que escumou em meu sangue anoitecido.
Há todo o devaneio da tua língua materna sobre cargueiros frágeis e esquecidos.
Há todo um mar docemente embalado pela peste que habita meu sexo.
Há a toda uma água vestida em corpo de viajantes, campos de trigo e de sonhos.
Há todo um cheiro de Homens e vísceras escondidos no obscurecido de teus olhos.

sábado, 26 de setembro de 2015

Velho Centauro

(Dedicado a meu pai)

Quando houve o encontro entre o centauro e o pequeno minotauro, 
Labirintos, tormentos e cascos ribombaram em corações há muito abandonados.
Dançaram a canção animal-homem que somente ambos conheciam.
Aquilo era força Fogo, era força Terra. 
Aquilo era um rito precioso e antigo, somente a aspereza compreendia.
Tudo o que havia de coração entre ambos, então transbordara.
O jovem minotauro cresceu robusto, saudável e cheio de um orgulho precioso de si.
Ele era a natureza que viria a ser, ele era um raio da manhã, um relâmpago,
uma ventania selvagem, uma cantoria de cascos, 
uma poeira de tantos desencontros, ali encontrada.
O Centauro sabido e bem mais velho, adoeceu.
Sua ferida não tinha cura, ele era a natureza que viria a ser,
ele era uma flecha numa constelação, uma cantoria de nebulosas,
uma poeira estelar de tantos desencontros, ali encontrada.
Seu corpo velho não poderia ser nutrido mais pelo coração do jovem centauro.
E este sofreu, e tudo o que era afeto, viria a ser um desespero mudo,
Desencontrado pela falta, pela fala, pela crueldade dos homens.
Pelejaram contra o destino, contra os deuses, contra a natureza, em silencioso anoitecer.
Quando houve o encontro entre o centauro e o pequeno minotauro,
Corpos, mortes e vidas formaram um desenho nos céus, 
Como uma linha tênue, ligada por somente alguns pontos.
O tempo passara, o que viria a ser centauro era agora uma constelação
Que o minotauro agora observava em sua contemplação emudecida.
Mas dizem que ainda se escuta um auspicioso galope em seu coração.
E que em certos dias de dezembro, um relâmpago corta os ventos com seu nome.


domingo, 20 de setembro de 2015

Cálcio e Estrelas

                                                                     Dedicado aos presos assassinados e 
desaparecidos no Chile, 
durante a ditadura militar de Pinochet,
 e às suas mulheres, filhas, irmãs 
que buscam restos de suas ossadas 
no deserto de Atacama.

O Sangue que ferve ossos desde o primeiro grito, forte, prematuro.
O galope ágil mistura folhas e galhos nos rostos pálidos.
O Vento quebra sons, indelicadamente, em barreira de areia e calcário.
Centelha de estrelas em olhos de cálcio.
Estrelas distantes, crepitar silencioso da nebulosa.
Labaredas e sombras em cavernas escuras, campos de morte.
Encontra-se somente o lodo de antigos sapatos, escritos e prantos.
Pedras, homens, carne fendida, gritos, estradas fervidas.
Silêncio, sangue que ferve ossos ancestrais, desaparecidos.
Cálcio dos ossos de todos os homens de estrelas fendidas.
Perdas, homens, ossos, galope silencioso de areia.
Rebentar de ventos em sóis do amanhã desaparecido.
Crepitar da barreira de areia em olhos de velhas mulheres, caminham.
Copo de vidro em mãos, quebra, estilhaça fragmentos de corpos de velhas mães, caminham.
O vento e as sombras fervem estrelas escuras, arenosas memórias, calcificadas.
Ancestrais, velhos ossos de baleia, crepitar ágil em olhos de cálcio, nebulosas areias-galáxias.
Pedras, sangue, horrores e guerras, caminham silentes em memória.
velho copo de vidro em mãos de cálcio, desaparecidas.
Centelhas, galope, versos de estrelas, barreira prematura e forte.
Areia velha, desaparecida, uníssono vento, prematuro, forte. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Há de ser

Vou-me embora e levarei somente a terra de meus cabelos.
Não desejo posses, bens, corpos, animais.
Há um cheiro agridoce no perfume do ar sereno, noturno.
Não há de haver muito, mas o que há de ser, há de ser pouco.
Pouco de terra em minhas botas, léguas de tréguas e silêncios.
Botas de ar embebidas em travessias e matagais.
Basta de guerras, há somente aquela semente na árvore distante, onde seivas descansam.
Léguas de tuas botas em meu peito de ferro, calado, dolorido.
O que há de se querer, há de ser tempo, há de ser duro, qual nuvem no céu, paisagem de montanha.
Há léguas, botas, cansaços, minha boca seca, meus odores fortes, suor, sexo, não há de ser muito, há de ser pouco.
E aquela sede, que mata, que carcome alma, que despe dentes, que disputa coração, há de ser vento seco, há de ser vento canto.
O que há de ser botas, há de ser noite, há de ser olhos revirados, feito de cão morto na penumbra da casa.
No revoar das botas, que caminham léguas, minha boca seca, teus olhos revirados, feito cachorro sereno, noturno.
Não há de haver animais, bens, cheiros, há de ser somente léguas e matagais, travessias de tuas botas no meu suor, no teu sexo, há de ser duro, onde seivas agridoces descansam.
Nas guerras findas, basta, há cansaços em meu peito de terra, levo travessias na semente da árvore distante.
Nos perfumes levarei somente teus cabelos embebidos de nuvem, suor, paisagem de montanha, há de ser pouco. Há de ser pouco.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Paisagem da Janela

Quando ergues tua mão de punho aberto para o céu noite,
Vejo como brilham teus dedos-estrela, ágeis e cansados.
Da janela vejo um homem manco, vestido de lama, ao sabor dos loucos.
Ele abriu as portas das mãos em direção às sombras, não fora visto.
Das árvores que remoem tempestades, vejo morcegos que se agitam em espirais-animal.
Todos estão um tanto soturnos, como se houvesse veneno sob a forma de humanidade,
em cada gesto, em quantos rodopiares de saias, em tempos estranhos, desumanos.
O fôlego das folhas está suspenso, como se causa fosse uma pausa que precede nota musical.
E como se sacode a solidão do homem e do morcego, 
quando as árvores atropelam meu silêncio vasto, prenhe, quase grito.
Caminha o firmamento em rapidez curta, banhando cortinas de chuva.
A solidão do morcego, do homem, da noite, das árvores, do vento,
Abrem mãos e asas de estrela e caminham juntos ao coração sereno do sono.
Mas não cumprirão o destino do amanhã, aprisionados nos termos de seu domicílio noturno.



domingo, 16 de agosto de 2015

Madrigal Vespertino

Compreendi que na trincheira da noite, encontrei o sabor da humanidade nos lábios.
Compreendi um cigarro de palha a contar estrelas que saltam além do farfalhar das árvores.
Compreendi que no escuro do sono alheio, havia algo de humano, de inominável que me ligava a todo esse mistério do outro, do sexo, da terra.
Compreendi que a madrugada traz um dom fraterno entre pássaros e céus adormecidos, agarrados ainda em teus dedos, na manhã vaga que prediz teu sorriso.
Compreendi que ser simples é que há de mais humano nos dias e na amizade.
Compreendi que companheiros de jornada estão além do sangue, além da força e da destruição, estão no fortuito de um cálice almiscarado e cheio de areia.
Compreendi que a morte é somente um caminho de pedras, emudecido por rochas marinhas, uma passagem para o indizível sofrimento dos homens. Mas este não é o maior sofrimento, este é um mergulho que clama por fôlego e fogo fátuo.
Compreendi que a dor traz memória e lembranças de rostos, nomes, assim como trilhas e costumes.
Compreendi que a liberdade é todo amanhecer silencioso, no canto dos rios, no ribombar das marés distantes, na viagem do sangue pelas veias, da contração dos músculos. Involuntário.
Compreendi que sempre é o tempo, que o tempo é partícula de vento, que é fluido e canhestro, mas sabido. Astros, mães, úteros, destes já me esqueci, porque é necessário perder, desistir. Seguir somente o caminho das flores.
Compreendi não possuir a noite, não deter o medo, como peixe furtivo entre os dedos assustados de criança.
Compreendi que não há nem desertos sem água, nem caminhos sem poeira.
Compreendi o rastro, o traço, o vasto da luz que dança através das ervas, das cores das ervas tocadas por nós.
Compreendi o amor e a luta das lunações imensas, insanas, caladas.
Compreendi que o que há de haver, há de ser pouco.

sábado, 8 de agosto de 2015

Primeiro Ato

Estava a rodopiar por tuas lágrimas distantes, poeirentas, cor de musgo muito antigo.
E percebi num instante que elas tinham um odor violáceo, de algum tipo de flor ou música, como um grito numa caverna ancestral. 
O primitivo de teu lábio inferior era violento, inominável, coisa branca, substância macilenta.
Havia terra e ar que girava no ar de tuas botas, caminhas largo, depressa. Quase agressivo, quando formava uma semi-curva sensual, germinal, masculina na sombra de corpo.
Não era mais o forasteiro, não lutava mais a tua causa.
Algumas pessoas e formigas temiam-te, eu bem adivinhei. Sou boa fisionomista de corpos estelares.
Faltava-lhe água para o amor ou uma substância outra. Disso eu bem sabia.
Não há muito tempo. O sentido da vida era prático, dizias, julgavas. Medias ruas, terras, vidas.
Eu me encontrava perdida em redemoinhos, encruzilhadas, marcadas pela cor e pela tensão de teus olhos claros, alaranjados, quando floresciam numa manhã de junho. 
E eu caminhava. Tu, te calavas. 
Coração bom é coração que procura, disseram-me.
Procuravas manter a alma emudecida, feito bicho na toca, mas escutava-se o gemer mercurial de tuas garras, na fria caverna de templo intocado, sagrado. Tabu era teu nome, tabu era teu silêncio. Tabu era teu medo e tuas muralhas covardes.
Eu sangrei as mãos, crispei os dedos e gargalhei na velha linguagem ditada pela Lua vermelha.
Pois era maldita, pecaminosa, cheia de ígnea loucura, de ritos, de mistério e de caminhos assassinos. 
A mãe que sufoca sua prole enquanto dorme, essa era eu, dizias, julgavas. 
O tempo é repleto de covas, ossos, portanto, enterrei teus dois corvos às profundezas das raízes da árvore mítica. Há um sistema de signos e símbolos na morte plutoniana. Não a decifremos.
O cinza tinha a cor de meus cabelos, a neblina era teu sorriso frio em minha carne. 
Teus dentes, minha angústia. Possuía o tridente daquele deus azulado, escuro, medonho.
Não desejo invocá-lo. Petrificados em abismos marinhos ficavam peixes e lebres.
Teus dedos em meu cérebro, deslizavam como mil aranhas, punindo meus sonhos. Teus sonhos.
Meus dentes em teus olhos, convulsionados como luz de demônio velho: Não havia mais forma.


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Primal

E então desceu aos infernos a fim de retomar a Lua.

Havia uma fera, sua pelagem era de um negro-noite tão místico quanto os uivos dos lobos.
Mas sua alma era felina-leopardo-lince-gato, caminhava por sobre telhados, estradas e matas. Encruzilhadas também faziam seus destinos. Diziam possuir olhos de noite-estrela, verdes e redondos, vivos, magnéticos, refletiam o amarelo dos céus noturnos, às vezes azulados ou purpúreos podiam ser vistos.
Havia em sua inocência de fera lunar, um brilho que abarcava manhãs e que detinha mais de mil sóis em seus bigodes, narinas, garras.

Há que se ter como tarefa manter a fera enjaulada. E essa é a minha tarefa, disseram-lhe.
Silêncio! Silêncio! Silêncio!
Berraram em seus ouvidos peludos e escuros. Ela não compreendia. Se atemorizou.
A fera sentiu medo, sua pelagem se eriçou e seu corpo tomou como movimento o brusco de caminhar lateralmente, como um pequeno caçador de borboletas, assustado por presenciar seu primeiro inverno. E manteve-se em silêncio. Em silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.

E silente afundou o corpo no lodo. no crime. no ódio.

Notou que seu focinho fora perdendo a aparência de fera da noite e começara a tomar por si que detinha agora de lábios e de um quase-nariz. Que suas patas haviam ganhado proporções de raiz, que existiam nodos terrosos em lugar do que se chamava por crânio arredondado que adornava sua cabeça. Então mergulhou mais no crime e bebeu da água dos poços infernais. Percebera chifres espiralados e fortes, talvez cascos também? Havia uma confusão de patas que dançavam no ar com violência, vozes, uivos, suspiros, berros, gemidos. Haviam sátiros nesse martírio, eles dançavam, cantavam, rodavam mais ainda o vento gargalhado em torno da pequena fera que - envelhecera muito nos últimos tempos - segundo disseram-lhe os chifrudos.

Pois que calem-se todos, há uma metamorfose de fera-humana, telúrica, bestial, madrigal. Não se sabe ao certo; mas este é mistério lunar que não termina a sua história, deixa uma marca de mandrágora nas águas noturnas sob as quais se desloca a cada temporada. E que se encontra sob sete vezes sete vezes sete vezes sete vezes sete palmos da terra.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Ódio e Neblina

O ódio que se acumula em meu ventre faz fogo vermelho, chumbo obscuro.
Como a garganta que arranha as paredes do meu útero em contorções violentas.
O ódio é um sentimento-movimento imperioso, impiedoso.
Movem-se lágrimas em olhos que transitam entre o abissal e o humano.
Entre o sono e vigília, como um raio voraz que devora e ilumina os céus com seus tentáculos.
Há muito que minhas artérias se intoxicaram por venenos, facas, lâminas, guilhotinas passadas.
Há a presença tântrica de um anjo com olhos-âmbar em meus músculos, suor, sangue e sonhos.
A água que corta meu sexo desafia teu luto, teu silêncio casto, tua vontade presa em pele de algoz.
Há a violência como máquina, força ancestral divina, ferro em brasa, marcando destinos sem rumo, marcando mães sem perdão.
Há uma estranha e muda maldição a embeber meus dedos, repletos por um vazio insone, enorme, sem estrelas.
Sem lábios doces pelo vinho das canções antigas, apenas observo a lua e suas fases, a contornarem-se em mutações esféricas, brancas, negras, nebulosas.
Há a neblina que persegue as veias e vasos esverdeados, entorpecendo de azul navegações e frotas inteiras, rotas internas, bússolas e homens mortos. Homens mortos, tortos, corroídos pelo extinto, pelo inexorável, pelo terrível. 

domingo, 19 de julho de 2015

Alquimia

"Se bem me lembro, 
minha vida era um festim, 
onde corriam todos os vinhos
 e exultavam todos os corações.
(Arthur Rimbaud)

Quando criança era alquimista, botânica e bióloga, auto-didata mesmo. Mas isso não tirava meu domínio e profundo conhecimento sobre a natureza. Possuía uma vasta coleção de cigarras secas, coletadas, já mortas, apenas com seu exoesqueleto evidente, em parques, e armazenadas cuidadosamente em sacolas de supermercado. Era um prazer estrangeiro e mimético, pois aquelas cigarras também cantavam a tragédia que já se gerava em meu coração. 
A vida era uma descoberta a ser vivida na terra, com as mãos como raízes e com os pés descalços, mergulhados no frescor da grama. As outras crianças não compartilhavam comigo desta aventura de escafandrista de minhocas, na verdade sentiam uma certa repulsa, quando me viam, ao longe, desenterrá-las, deixando-as pulsar em espirais telúricos nas palmas das mãos, para logo em seguida devolvê-las seguras às suas moradas. 
Lembro-me ainda quando vi um pequeno escorpião e me inclinei sobre o mesmo, fitando-o face a face com seu ferrão e com seu pequeno corpo negro e imóvel, indomável e cheio de dignidade. Conversei com ele e dando-lhe um nome científico e outro de amigo, por estar ali disponível para uma troca entre o humano e o selvagem. Claro, afinal eu o tinha descoberto, num terreno baldio, meio úmido, cheio de lixo e cacos de telhas, habitat desses seres antigos, logo, tínhamos estabelecido um mudo e breve contrato de amizade, o que nos permitia a compreensão.
Havia também as aranhas que eu delicadamente alimentava com pequenos cadáveres de baratas caseiras, caçadas com precisão felina. As aracnídeas tomaram conta de um espaço entre a fresta detrás da porta e a parede do banheiro, em suas frágeis, quase translúcidas teias, teciam sua casa, pacientemente, com suas múltiplas e amareladas pernas, sempre a trabalhar. Encantava-me seu primor, a perfeição daquele padrão mágico, alquímico, imersas sempre em seu silencioso mundo de aranha. Elas tinham nomes convencionais, dados por mim, como Maria, Laura, Joana, etc. E eu sabia distingui-las entre si, apesar de qualquer ser desavisado encontrar em todas tamanha semelhança que chamaria a minha precisão de imaginação infantil, fértil demais. O mundo profundo, vasto, encantado e calado desses pequenos animais, me despertava para o meu próprio mundo e me tornava mais próxima de mim mesma, de solidão de criança. Aqueles foram meus melhores e primeiros amigos, com quem mais troquei e aprendi, pequenos seres dos quais cuidei, alimentei e cultuei seus corpos de queratina em meu universo de gastrópode-menina.

Carapaça

Existem animais que se movem entre os séculos, desde tempos imemoriais. O caranguejo, o escorpião, lagartos, peixes, aves de rapina.
Estão ligados ao fio primitivo, àquilo que o homem sepultou durante milênios de civilização, sob impérios e pirâmides, sob cimento e areia, sob sistemas de irrigação e agricultura, através do domínio do fogo, através do domínio dos sentimentos.
Na animalização dos instintos e ditos insanos, na bestialização dos sentidos, polidos e regrados por reis e príncipes, por decretos e leis, através da crueldade do homem público, citadino.
A desmistificação do destino como serpente. A serpente como raiz; como radical dos seios, da vagina e do útero femininos. E dos sentimentos não silenciados. A figura meio selvagem associada ao primitivo e ao mesmo tempo à agilidade da inteligência e à capacidade de capturar tenazmente sua presa, podendo ser dotada de peçonha ou de garras.
Sistema Nervoso Central e a explicação purificada de suas ramificações.
Deus criou o Homem e o Demônio,
O Demônio criou Deus e o Homem,
E o Homem criou Deus e o Demônio
Para perpetuar a dança colérica das marés e dos ventos solares, a dança das estrelas em nascimento e morte, o rodopiar dos planetas em torno de si mesmo e das tripas dos animais.
O crepúsculo, Lua, Júpiter e Vênus nos céus, aos olhos do mundo, aos olhos do sábio, aos olhos do velho, aos olhos do novo, sobre os auspícios deus e dos homens.
Humanos presos aos destinos das carnes próprias e dos sexos dos astros. Os animais de carapaça, os mais primitivos, são aquáticos. Nossas raízes estão embebidas no solo da terra, terrosa, fria e profunda. E nas águas, planetário lírico e libidinoso, nossas raízes estão nos musgos e líquens, estão no céu da boca de um riacho, no mangue, no mar, no córrego, nas cachoeiras, nas nuvens encharcadas de chuva cinzenta. 

terça-feira, 14 de julho de 2015

Lua em Centauro

Sei que em algum momento dos fins de um setembro quente você devolveu, por um breve 
momento, minha esperança na luta, na vida melhor, num dia de sol, num trem lotado, terrivelmente quente, num dia de novembro, mas que poderia conter o amanhã. Plantar sementes aos que virão. E eu fui tua ilusão ruiva, tua projeção intelectual, política, de mulher forte e sensível, de mulher excentricamente bonita. Estávamos num galope forte nos medos e no corcel da utopia. Centauros e minotauros permeavam nossos mitos e sombras, em espírito anárquico. Sonhei, não posso negar. Assim como a morte abrupta trouxe novamente a espuma cinza do mar dos dias sem mais lutas, sem mais luas vermelhas e gatos tigrados. E de repente uma frieza doentia tomou conta de tudo e você sofreu. E eu sofri. E tudo estancou. Cavalo refreou ímpeto e a poeira dançou no ar por algumas estações.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Vim de Saturno para amar você

"Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:
- Quem é?
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
- Quem é você? perguntou trêmula.
- Vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! gritou.
- O que importa é que você está me sentindo.
E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.
- Como é que você se chama? perguntou com medo.
- Pouco importa.
- Mas quero chamar seu nome!
- Chame-me de Ixtlan.
Eles se entediam em sânscrito. Seu contato era frio com o de uma lagartixa, dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada."
(Clarice Lispector, Via Crucis do Corpo, trecho de Miss Algrave, p.17)

Esse é um trecho icônico do conto Miss Algrave, de Clarice Lispector, contido na obra Via Crucis do Corpo. E quem seria essa moça que vivencia tamanha experiência excentricamente sensorial e inexplicável com uma figura emblemática, sombria e profunda? Eles se compreendiam em Sâncrito. E a protagonista era uma pudica, recatada e mesmo alcoviteira insuportável na pacata cidade na qual vivia. Levava uma vida medíocre, não se permita prazeres nem mesmo quaisquer tipos de luxos ou extravagâncias, julgava e condenava a todos, eram também os outros uns hipócritas mesmo.
Como você se chama? Sabemos que Saturno é um planeta que compõe nosso tão conhecido (ou pelo menos muitos acreditam nessa premissa) sistema solar. É muito conhecido por seus belos anéis, constituídos por poeira e gelo. Também foi considerado, ao longo de diversos séculos, o planeta mais frio e distante do Sol. E o mito de Saturno? Jovem Deus, filho libertário e inconformado com a tirania de seu pai, o Deus Urano, resolve castrá-lo e destroná-lo a fim de que se inicie a denominada pelos romanos, como Era de Ouro de sua História. Porém o poder corrompe a todos, quando não compartilhado, até mesmo aos mais pretensos entusiastas e igualitários. E os jovens também envelhecem, endurecem, enrijecem e não querem que seu trono fique vacante, não percebem quando, muitas vezes, sua morada diurna não mais existe e agora o inverno de sua morada noturna é tão somente o que lhes resta. Alguns ambicionam ser seu mais doce cetro como o centro do universo e sua palavra como um dom a ser escutado e obedecido por todos os outros seres viventes seja das esferas celestes, terrenas e ctônicas. Porém Saturno não escapa de seu destino e a profecia se cumpre: este é destronado e aprisionado por seu filho, Júpiter, aquele que por engano, não conseguiu devorar.
Vim de Saturno para amar você. Mas o ato sexual com essa criatura estranha, sem gênero, de aparência cruel, fria e provocadora, também excita, amedronta e fascina. Ela pulsa vida e morte, ela pulsa sexo. Ela pulsa o seu desejo. Ela pulsa o meu desejo. O que importa é que você está me sentindo. Sua cabeça repleta de serpentes pode ser interpretada, em primeiro momento, como uma clara alusão ao falo masculino, mas se analisarmos a serpente com mais calma, está associada em nossa tradição judaico-cristã, à sedução e ao pecado incentivado ativamente pela mulher, pelo desejo feminino, restrito, calado, cassado e ainda punido. Prove do fruto proibido. E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.
Chame-me de Ixtlan. Seria ele/ela a deificação do desejo animalesco, profundo e desconhecido da protagonista? Seu contato é frio, mas intenso a ponto de revirar com a vidinha da nossa pobre moça beata. Agora ela é puta. O símbolo máximo da queda que uma fêmea humana pode chegar. Não há redenção na prostituição, ela é uma marginal e seu corpo e sua alma queimarão em perdição, dor e exploração. E quanto mais próxima do fundo poço, mais se permite sentir, desfrutar, gozar e uma nova faceta se mostra a ela. Ambígua experiência, assim como toda tragédia aos moldes dos gregos antigos. O algoz é vítima também. O manto que cobria seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada. Sangue da virgem que é deusa, da puta que é santa. Lavemos seus pés com nossos cabelos ou com aquilo que ainda nos restar de sombras, pureza e luxúria.

 

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Nasci num mundo estrangeiro, cheio de tombos, buracos, virtudes ocultas, desprezos vis, humana em sua plenitude.
Nasci antes do tempo, talvez antes do definido, medido, moldado por mãos não-humanas.
Cresci com seriedade e solidão, numa vida de chumbo, terra e ventanias, mas ainda não as conhecia feito gente grande.
Cresci em pensamento nutrido de que poderia viver somente no olho do furacão, sendo mulher guerra e cheia de muralhas, cabelos curtos, revoltos feito coração em chamas, repleta de vicissitudes em meio aos redemoinhos.
Percebi que havia sempre uma nota dissonante, levemente sincopada, não pertencente aos meus tristes dias, envoltos em neblina e agora de passados.
Percebi o chumbo que o tempo trás, os olhares vazios, as mãos frias e a crueldade dos homens.
Descobri abusos, gritos, desordens, mordi a faca com a lâmina de encontro à minha saliva meio seca, língua com gosto pelo universo, língua repleta de corpos sem cor. Lutei, perdi amores e causas.
Descobri que ao mirar para os olhos alheios, aquele caos habitava já em meu peito, mas os caleidoscópicos versos corriam, os sorrisos lambiam minha testa em febre, talvez aumentando ainda mais o tremor da pele eriçada, feito gato no telhado da noite. Conheci a melancolia.
Então vieram as chuvas e se tornaram mães, irmãs, como as mulheres de minha vida, numa terra devastada, amargurada.
O mistério tinha teu nome, meu nome, minhas vísceras, minhas pernas perseguiam o medo. 
O coração era descabido, desavisado no peito, não tinha mais como parar, não compreendia como tamanho cinza poderia pulsar em carne vermelha.
Não sabia provar mais daquele mel em olhos, não sabia qual era o bicho que perambulava no ar, não conhecia o bater das asas e o som da filosofia que permeava as águas frias do teu desejo.
Tudo virou neblina em meus seios, em meu sexo, a turva claridade, tudo agora possuía dom próprio.
Não pretendo amizades com reis e autoridades, traço meu caminho em queda e exílio, exalto o amor, sobretudo quando meu peito tem regras em seu domicílio.
Agora estou invertida, mas se fitar-me noutro ângulo, talvez, possa eu estar a dançar velhas cantigas e também a sorrir aos luminares.

domingo, 7 de junho de 2015

Queria compor juntamente à sonoridade, canção que retornasse aos primórdios do Sol, quando em fúria, antes talvez, se espelhou nos olhos da trevas e assim fez a sombra de nós. Mas guerras do peito se anunciam vazias e destrutivas junto às projeções lunáticas. A matéria-prima alquímica dos sonhos se tornou hermética, em sua solitude cardinal.
Não sabia mais que rumo transformador tomar, se mergulhava em espelhos de morte ou se construía pontes mercuriais, revolucionárias. Na minguante lua se desfazem afetos e pálpebras aéreas. Os desejos e aqueles velhos fetiches escaparam também ao poder do sexo e puderam moldar a argila em vertiginosas águas sobre águas.

"Há ainda serpentes para alimentar e poços para cavar", afirma (des)conhecida voz.
O processo é tal como um deus caolho e, por isso, sábio, pendurado por nove dias e nove noites. É como um deus salvador, vindo de um Oriente distante e crucificado e morto, para ao cabo de três dias, transmutar-se.
É também como a energia do éter na matéria, como a poesia recitada por diversas línguas e cantos distantes. É como o início dos dias em tempos imemoriais.
Toma em tuas mãos o trabalho das vidas inteiras, das cores, das faces dos astros, das facetas dos deuses, da polaridades e triplicidades. E " torna-te quem tu és.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Posso amar em silêncios e cartas não escritas.
Posso calar à visão espiralada de seus olhos escuros.
posso apagar o passado e futuro ao som de tuas cordas.
Posso gritar, me levantar, arranhar paredes.
Posso devorar a solidão em pratos alheios.
Posso usar a farda do cansaço e da estrada.
Posso acender um cigarro e presenciar o nada.
Posso ser pássaros em revoada, como um galope.
Posso cortar uma fotografia envelhecida.
Posso cantar o suave vento, amarelado pelo sol.
Posso ser névoa e neblina, somente um pensamento teu.
Posso anelar teus cabelos revoltos em meus dedos.
Posso sentir sede e fome e matá-las no céu.
Posso buscar poesia e somente haver 
tinta, papel 
e tristeza.

(24/12/2013)
Eis aqui um coração
envolto na bandeira negra
do luto e do anarquismo,
que se nega à pulsar
em fluidos e dissolutos cinismos 
que abraça a loucura e suas transformações
revoluções
e se deleita em companhia de estranhos e cães.
E dos párias. E dos sem pátria. E dos sem mães.
E dos sem Deus.

(13/04/2014)
Os tons alaranjados e purpúreos do cair
da tarde
trouxeram um sentimento estranho aqueles
que guerreavam:
Não era por causa das bombas,
pois estas não lhes afetava os corações.
Não era tampouco por causa dos tiros,
pois estes não lhes minava a mente em coragem;
mas o medo e ódio instalados no sangue,
estes sim, destruíam homens e terras.

(12/04/2014)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Aceita-me e me ama obscura?
Aceita-me fugidia entre os teus dedos
e tuas pálpebras?
Aceita-me como rio fresco e se perca
no tropel de meus cabelos empoeirados.
Aceita-me doce e intangível, calada, sôfrega.
Aceita-me sem nada e prenhe de passados.
Aceita-me crua ainda em negra carne.
Aceita-me em pensamento, suspiro, devaneio.
Aceita-me, assim, triste e empobrecida.