sábado, 2 de abril de 2016

A Casa Vazia

Quando você chegava e tocava com teus dedos de tocador de piano minhas vísceras
Era como se meus olhos percorressem por uma casa de onde nunca pertenci,
Mas onde todos os objetos eram tão concretos e de uma cor azul real tão forte, 
intenso, vivo que parecia que nunca em todas coisas e objetos poderia jamais existir a morte.
Era tão suave e pleno, minha saliva revirava levemente por minha garganta e minhas cordas vibravam em tons mais graves, em tons mais sensualmente sutis que compunham algumas luas.
Teu dedilhar por minhas pálpebras era como o contorno de um pescoço que se vira e deixa escapar
a luz do sol em dia de luz clara, direto nos olhos de quem se encontra logo atrás.
Logo após o vagar de teus dedos por aqueles objetos azulados a beleza brotava, 
caminhava, em força silenciosa, em força bruta, bruta igual à beleza, 
igual à beleza que é bruta força no vagar de teus dedos.
Mas havia uma pausa em que levantava os olhos para mim e esboçava um sorriso de terra
que eu pintava em  tantos objetos naquela casa 
que era repleta de dons, de corpos, de cheiros próprios.
O vento trazia o trato e sussurrava que em sua força beleza bruta nada daquilo me pertencia.
Nada de olhos, nada de saliva, nada de pescoço contorcido na delicadeza das unhas 
e dos lábios num dia de luz clara.
Não me pertencia naquela casa repleta de objetos de força e de beleza e de saliva.
Quando eu escutava teu caminhar era como se houvesse uma valsa que rodopiava por sobre os esqueletos da casa de força bruta e de beleza azulada.
A casa vazia e repleta de objetos de força bruta e de beleza matinal a ti te pertenciam.
Eram as flores que traziam os objetos todos para dentro da casa 
com inúmeros quartos, com inúmeras escadas.
As vezes penso que cabem vilarejos e universos inteiros dentro da casa de cor azulada que é força que é beleza e que traz raízes de muitas hortaliças antigas, adubadas com bruta força de tua saliva.
A casa vazia é tua, somente tua. 

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A Cidade

A ventania que percorreu a janela do prédio alto em sensação de crime e de chuva era
Como se um corpo tivesse emudecido, atirando-se, sem dó, sem nome, sem mãe.
Havia brisa, névoa, vertigem, vento que entra pela corrente sanguínea e nomeia coisas.
Havia um monte de olhos que desejavam a tua descoberta emudecida, empoeirada nas calçadas.
Havia um ponto sem caminhos, como ponte que volteia em estrada vazia.
O cantar do pássaro agora retinha duas vezes um som trinado de limitada liberdade.
Havia o pássaro em árvore velha e nodosa que estoura a raiz do concreto.
Havia no submundo daquele canto de pássaro uma cidade vasta de cansaço e de fardos sem memória.
Cantei tantas léguas, botas, caminhos de estradas, forasteiros, montanhas e olhos verdes que encontrei no revoar dos dias.
Hoje canto a cidade que emudecida se esqueceu de todos, pois nasceu para o cinzento e para o mais do que breve, cidade que nasceu para a secura dos tempos.
Hoje canto a falta, a lata no chão, o bueiro sem tampa expõe uma fiação elétrica.
Hoje canto carro, canto capote de carro em ponte engarrafada, em buzina alta, crescente, carro de indefinida cor, de marca qualquer, irrigado por álcool ou gasolina.
Hoje escrevo um poema sem pressa e sem anseios, apenas no digitar das palavras, na constância embotada e repetitiva dos dedos.
Hoje há somente o pombo, a barata, o lixo, o verme que devora os restos do lixo, a pulga, o piolho.
Hoje não canto madrigais, não canto jograis, pois que não há luz vespertina que ressoe no coração dos campos de trigo. 
Hoje não há campos, não há cavalos, galinhas, ovos, sonhos, bichos, sorrisos, esperanças.
Hoje há somente alguns carros parados na esquina, pessoas aglomeradas no esquecimentos dos dias, paradas igualmente, olhar vago sob os freios dos ônibus sujos e quentes.