quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Paisagem da Janela

Quando ergues tua mão de punho aberto para o céu noite,
Vejo como brilham teus dedos-estrela, ágeis e cansados.
Da janela vejo um homem manco, vestido de lama, ao sabor dos loucos.
Ele abriu as portas das mãos em direção às sombras, não fora visto.
Das árvores que remoem tempestades, vejo morcegos que se agitam em espirais-animal.
Todos estão um tanto soturnos, como se houvesse veneno sob a forma de humanidade,
em cada gesto, em quantos rodopiares de saias, em tempos estranhos, desumanos.
O fôlego das folhas está suspenso, como se causa fosse uma pausa que precede nota musical.
E como se sacode a solidão do homem e do morcego, 
quando as árvores atropelam meu silêncio vasto, prenhe, quase grito.
Caminha o firmamento em rapidez curta, banhando cortinas de chuva.
A solidão do morcego, do homem, da noite, das árvores, do vento,
Abrem mãos e asas de estrela e caminham juntos ao coração sereno do sono.
Mas não cumprirão o destino do amanhã, aprisionados nos termos de seu domicílio noturno.



domingo, 16 de agosto de 2015

Madrigal Vespertino

Compreendi que na trincheira da noite, encontrei o sabor da humanidade nos lábios.
Compreendi um cigarro de palha a contar estrelas que saltam além do farfalhar das árvores.
Compreendi que no escuro do sono alheio, havia algo de humano, de inominável que me ligava a todo esse mistério do outro, do sexo, da terra.
Compreendi que a madrugada traz um dom fraterno entre pássaros e céus adormecidos, agarrados ainda em teus dedos, na manhã vaga que prediz teu sorriso.
Compreendi que ser simples é que há de mais humano nos dias e na amizade.
Compreendi que companheiros de jornada estão além do sangue, além da força e da destruição, estão no fortuito de um cálice almiscarado e cheio de areia.
Compreendi que a morte é somente um caminho de pedras, emudecido por rochas marinhas, uma passagem para o indizível sofrimento dos homens. Mas este não é o maior sofrimento, este é um mergulho que clama por fôlego e fogo fátuo.
Compreendi que a dor traz memória e lembranças de rostos, nomes, assim como trilhas e costumes.
Compreendi que a liberdade é todo amanhecer silencioso, no canto dos rios, no ribombar das marés distantes, na viagem do sangue pelas veias, da contração dos músculos. Involuntário.
Compreendi que sempre é o tempo, que o tempo é partícula de vento, que é fluido e canhestro, mas sabido. Astros, mães, úteros, destes já me esqueci, porque é necessário perder, desistir. Seguir somente o caminho das flores.
Compreendi não possuir a noite, não deter o medo, como peixe furtivo entre os dedos assustados de criança.
Compreendi que não há nem desertos sem água, nem caminhos sem poeira.
Compreendi o rastro, o traço, o vasto da luz que dança através das ervas, das cores das ervas tocadas por nós.
Compreendi o amor e a luta das lunações imensas, insanas, caladas.
Compreendi que o que há de haver, há de ser pouco.

sábado, 8 de agosto de 2015

Primeiro Ato

Estava a rodopiar por tuas lágrimas distantes, poeirentas, cor de musgo muito antigo.
E percebi num instante que elas tinham um odor violáceo, de algum tipo de flor ou música, como um grito numa caverna ancestral. 
O primitivo de teu lábio inferior era violento, inominável, coisa branca, substância macilenta.
Havia terra e ar que girava no ar de tuas botas, caminhas largo, depressa. Quase agressivo, quando formava uma semi-curva sensual, germinal, masculina na sombra de corpo.
Não era mais o forasteiro, não lutava mais a tua causa.
Algumas pessoas e formigas temiam-te, eu bem adivinhei. Sou boa fisionomista de corpos estelares.
Faltava-lhe água para o amor ou uma substância outra. Disso eu bem sabia.
Não há muito tempo. O sentido da vida era prático, dizias, julgavas. Medias ruas, terras, vidas.
Eu me encontrava perdida em redemoinhos, encruzilhadas, marcadas pela cor e pela tensão de teus olhos claros, alaranjados, quando floresciam numa manhã de junho. 
E eu caminhava. Tu, te calavas. 
Coração bom é coração que procura, disseram-me.
Procuravas manter a alma emudecida, feito bicho na toca, mas escutava-se o gemer mercurial de tuas garras, na fria caverna de templo intocado, sagrado. Tabu era teu nome, tabu era teu silêncio. Tabu era teu medo e tuas muralhas covardes.
Eu sangrei as mãos, crispei os dedos e gargalhei na velha linguagem ditada pela Lua vermelha.
Pois era maldita, pecaminosa, cheia de ígnea loucura, de ritos, de mistério e de caminhos assassinos. 
A mãe que sufoca sua prole enquanto dorme, essa era eu, dizias, julgavas. 
O tempo é repleto de covas, ossos, portanto, enterrei teus dois corvos às profundezas das raízes da árvore mítica. Há um sistema de signos e símbolos na morte plutoniana. Não a decifremos.
O cinza tinha a cor de meus cabelos, a neblina era teu sorriso frio em minha carne. 
Teus dentes, minha angústia. Possuía o tridente daquele deus azulado, escuro, medonho.
Não desejo invocá-lo. Petrificados em abismos marinhos ficavam peixes e lebres.
Teus dedos em meu cérebro, deslizavam como mil aranhas, punindo meus sonhos. Teus sonhos.
Meus dentes em teus olhos, convulsionados como luz de demônio velho: Não havia mais forma.