domingo, 24 de janeiro de 2016

Madrigal Vespertino II

Nasci porque sou o poder das alquimias dos verbos.
Nasci para dançar sobre as tuas pegadas de sangue.
Nasci para roubar as medalhas sob a forma de morte que habitam teu peito.
Nasci para escalar sete pedras, sete rumos de imortalidade cantam meus nomes.
Nasci para beber de teu sangue, para esfregá-lo com violência em meu rosto, mãos e ventre.
Nasci para portar língua demoníaca e cheia de signos, repleta de símbolos.
Nasci para no renascer do místico e do indizível dançar sobre teus ossos antigos.
Nasci para na escuridão dos olhos, mirar e enxergar vista distante.
Nasci para percorrer teu corpo com minha saliva ácida.
Nasci para portar a estranheza e a excentricidade.
Nasci para que meu lábios percorram fundo o teu coração de verme.
Nasci para beber das águas do esgoto profundo e transmutá-las em tantas almas e olhos de animais.
Nasci para doar a morte, doar a vida, doar minhas vísceras, para que tome minha verdade em teus dias.
Nasci para ser filha da noite sagrada em sua plenitude de múltiplas sexualidades.
Nasci para que em minhas mãos haja todos os líquidos quentes e aqueles que transbordam de tua genital.
Nasci para que haja a tempestade e para que meus pés tragam o caos para o teu coração.
Nasci para ter nome de divindade, para ser sagrada, venerada em seu ultraje profano.
Nasci para vagar por caminhos, encruzilhadas, estradas, terreiros.
Nasci para não ter mães, para não ter pais, para não ter passados.
Nasci um tanto morta para esse mundo.
Nasci para tardiamente relembrar daquilo que vivi noutros corpos.
Nasci para beber de teus tabus e vomitá-los em teu rosto.
Nasci para crescer, morrer, renascer, parir-me tantas e tantas vezes.
Nasci para a loucura, para os perdidos.
Nasci para perseguir a castidade do cio.
Nasci para aqueles que podem me enxergar porque assim eu permiti.
Nasci para permitir e para negar.
Nasci para doar a estranheza e renascer.
Nasci um tanto para ser filha da noite na escuridão dos olhos.
Nasci para doar minhas vísceras das águas do esgoto profundo e transmutá-las.
Nasci para dançar sobre rumos de imortalidade que vivi noutros corpos.
Nasci para que haja a plenitude de suas múltiplas castidades.
Nasci para permitir o cio para a loucura.
Nasci para doar a vida em encruzilhadas e parir-me tantas e tantas vezes.
Nasci para portar signos de líquidos de divindade e para portar língua demoníaca.
Nasci porque possuo o ser, possuo o ter, possuo o desvendar e possuo o Poder.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Copo Emborcado

Parece-me que no momento eterno e vasto anterior ao passado,
Aquele momento de dia de chuva em céu cinzento,
Aquele momento em se tentava calar a dor em céu dormente,
Aquele momento anterior à fuga do medo,
Exatamente era ali que se encontrava a perdição.
A perdição da mentira se encontrava emborcada num copo sobre a mesa.
A perversidade do momento anterior ao passado se dava em lapso surdo.
Nunca acompanharemos o caminho, o Destino, a luz que afugenta a alegria dos olhos.
O caminhar do gato em telhado antigo, sozinho, molhado, escorregadio, água de poço.
O fundo lodoso das mãos secas, os campos de trigo não cultivados, as alamedas em descaminhos.
Parece-me que quando o grito se torna alto, ele se torna surdo.
Parece-me que o desespero da noite, do copo emborcado, do sorriso estranho,
estão aprisionados no instante que precede o passado e o medo.
O engano de si próprio, a perda de si próprio, num copo emborcado contra o tempo.
Parece-me fustigado pelo terror, pelo solilóquio, por um sol demasiado acanhado.
Parece-me um humano incompleto, sem braço, com seu copo emborcado sobre o tempo,
Parece-me que estava antes do passado e do silêncio com alguma espécie de vinho tinto, denso, acalentador, de um tom magenta silencioso e vítreo.
Parece-me que o copo emborcado no passado de teus dedos e dias esperou a alucinação em estado sóbrio.
Esperou a alucinação em estado sóbrio e líquido, queimou marés, afagou rostos no poço lodoso do passado nos dedos.
Parece-me que aquele que indicava um céu cinzento estava anterior ao passado.
Exatamente era ali que o caminhar do gato não estava cultivado.
A perversidade do engano de si próprio tentava o desespero da noite, por um sol demasiado denso, tinto, acalentador, de um tom magenta silencioso e vítreo. 
Parece-me que telhado antigo se tentava vasto e eterno em lapso surdo.
Nunca acompanharemos o caminho, o Destino, a luz que afugenta a alegria dos olhos.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Lunação do Tempo

Desde tempos imemoriais, fui abraçada pelo caos, seu rodopiar centrípeto me refazia em gelo e pavor. Eu nunca estremecia de olhos cerrados. Pois tudo era de mistério repleto e de miséria e cantos de mortos. Minha vagina, meu útero, meus seios eram matéria viva, em decomposição, sem estrutura, todo o meu corpo esteve por séculos sem lar.
Seu horror silenciosamente destrutivo, mudo, quase abominável, me arrastou por mares, oceanos, me prendeu entre o fim e o início de um fragmento de tempo, de uma rocha, de uma estrela, de uma paixão inominável, fustigou minhas mãos estrangeiras e solitárias em meio ao lodo da loucura em flor.
Sempre enxerguei a alma humana em profundidade e, vê-la, assim tão despida e sem tabus, repleta de medos e potências, me tornou ainda mais muda em minha solitude sigilosa de esquadrinhadora de corações e mentes. Eu sempre fui perigosa, precisava ser silenciada, presa, amordaçada. Mas a mirada sobre os tabus assumiu a vitalidade de minha história e meu olhar se transformou em fera. E a fera corrupia em gargalhadas noturnas, pois a ferocidade de meu peito cavalga em trote veloz sobre os corpos dos carrascos do passado.
Basta mirar dentro de minhas sombras de fumaça negra que se pode encontrar o Outro por completo, a outra face, a face que carregamos nas costas, em sua frágil e tênue linha humana, se debatendo entre a pretensa arrogância de quem deseja, de quem necessita sobreviver com pobres e derrotadas máscaras. As máscaras são mais amplas, vastas, argutas e soberanas e isso também descobri neste mistério.
Eu vi muito, cavei poços obscuros, morri de sede, de calor, de frio e estive à beira da loucura e abracei o caos. A dor permanece, mas eu não permaneço, pois sou partícula indizível do horror da visão, da experiência e carrego a morte como pequena criança adormecida nos braços, como palavra que de sutil abrupto atravessa a língua e estanca na memória dos lábios.
Desde tempos imemoriais, abraço o caos, seu rodopiar centrípeto me refaz em gelo e pavor. Eu nunca estremecia de olhos cerrados. Pois tudo era de mistério repleto e de miséria e cantos de mortos. Minha vagina, meu útero, meus seios são matéria viva, em decomposição, sem estrutura, todo o meu corpo está por séculos sem lar.
Agora detenho de fragmentos de diversos segredos sob o medusiano olhar que sobreviveu e cada vez mais pode enxerga-los. Mirada que os disseca em teu torpor, em tua luta, em tua mesquinha frieza, em tua ironia tímida, insegura e passional, em tua violência brutal e primitiva. Detenho o pó das estrelas em meu sangue, assim como você. Mas também detenho um antigo demônio do Tempo e dos portões da desgraça e dos Destinos como nome. E ele agora está em meus olhos cor de terra, comandando navios, lunações, almas e mães.

Desde tempos imemoriais, serei abraçada pelo caos, seu rodopiar centrípeto irá refazer-me em gelo e pavor. Eu nunca estremecerei de olhos cerrados. Pois tudo será de mistério repleto e de miséria e cantos de mortos. Minha vagina, meu útero, meus seios serão matéria viva, em decomposição, sem estrutura, todo o meu corpo estará por séculos sem lar.