quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Matar o tempo é memória terrena

                                            Dedico ao meu avô materno


Meus caminhos foram dedilhados para escarpar montanhas escaladas, espumar poeiras com os cascos, chafurdar entre pedras silenciosas, como encontro, como perdição, como saudade bruta e que dilacera sem ter fim. E em pendências que transpassaram por ciclos planetários, rompi com o que de envelhecido havia na leveza triste, e em clareira no meio da nuvem, havia fogo, prisão e neblina.
Na tristeza de passar por constelações entre os dedos e perfurar meus próprios olhos, estrangular minha voz, silenciar rochedos banidos pelo mar, despidos pela cósmica frieza que o vento traz, olhei novamente para trás e vi teu rosto magro, abatido, de olhos escuros, voz grave, alta e taciturna.
Meu avô lia Augusto dos Anjos para minha avó, na cama, para assustá-la, antes de dormir, antes de acordar assassinado e indigente num riacho longe de beira de estrada, longe da beira do mundo, longe da beira do interior de Minas. Décadas amarelecidas pelo vento que tudo conta, que tudo canta, que tudo corta, que entorpece os olhos de areia e traz a saudade como marca de sangue, como reencenar o canto do Outro. Ele era ator de rádio novela, meu avó, magro, alto, de sobrancelhas grossas, garboso, filho de imigrantes italianos, muito pobres, vindos da Sicília, terra árida, seca, grave, próxima à beira do mundo. Amanhã acordo com tudo aquilo o que é para se acabar e se findar de vez, que se finde e que sigamos nas beiras de precipícios com a humildade que nos convém, e que nos falta, com o ramo de trigo empunhado em mãos nesse ano, data máxima venia. Mas sou ao mesmo que uma anti-finitude do todo, pois guardo imensa matéria memória que é fogo, prisão e neblina, que é saudade bruta, que é permitir saborear vogais corriqueiras de nomes de ancestrais entre os lábios, mesmo de olhos escuros, mesmo sem fotografias, mesmo banidos pelo mar, mesmo com os dedos a perfurar os próprios olhos, mesmo que na beira do assustado encontro esteja mais um nome desconhecido apenas. Leva-se algum tempo conhecer o tempo, respeitar tempos de semeaduras, plantios, colheitas, chafurdar entre as pedras silenciosas com uma respiração entrecortada por juncos e lágrimas, pela matéria que envelhecida na neblina decanta os fragmentos de montanha que ainda possuo na sola dos sapatos antigos. Ele, meu avô, quebrava o pescoço das galinhas do quintal, quando embriagado, na frente da filha pequena que horrorizada se colocou no próprio poema putrefato do Augusto dos Anjos e por ali permaneceu mais tempo do que deveria de fato, de olhos escuros, se manteve a mesma menininha, assustada e tímida, do Itaim Bibi, quando este era bairro de beira do mundo, de empregadas domésticas e de imigrantes, de uma leveza triste e abatida, algo de beira de São Paulo Capital em meados da década de 1960. Essa moça, filha do meu avô que quando embriagado chamava os filhos de animal, teve uma filha prematura e que nasceu ruiva, feia e cabeluda, que desejava-se pela mãe que fosse moço, porque o mundo é dos homens, ainda mais nessa beira de estrada que é o mundo. Essa criança é minha mesmo? Foi a primeira pergunta assustada no hospital em greve que a menina neta do avô que lia Augusto dos Anjos nasceu, soube sobre si, antes mesmo de chorar ou logo depois, não importa, não consola. Na tristeza de passar por constelações entre os dedos e perfurar meus próprios olhos, estrangular minha própria voz, silenciar meus próprios rochedos banidos pelo mar, despidos pela cósmica frieza que o vento traz, olhei novamente para trás e vi teu rosto magro, abatido, de olhos escuros, voz grave, alta e taciturna e senti saudades, por não haver te conhecido.