domingo, 19 de julho de 2015

Alquimia

"Se bem me lembro, 
minha vida era um festim, 
onde corriam todos os vinhos
 e exultavam todos os corações.
(Arthur Rimbaud)

Quando criança era alquimista, botânica e bióloga, auto-didata mesmo. Mas isso não tirava meu domínio e profundo conhecimento sobre a natureza. Possuía uma vasta coleção de cigarras secas, coletadas, já mortas, apenas com seu exoesqueleto evidente, em parques, e armazenadas cuidadosamente em sacolas de supermercado. Era um prazer estrangeiro e mimético, pois aquelas cigarras também cantavam a tragédia que já se gerava em meu coração. 
A vida era uma descoberta a ser vivida na terra, com as mãos como raízes e com os pés descalços, mergulhados no frescor da grama. As outras crianças não compartilhavam comigo desta aventura de escafandrista de minhocas, na verdade sentiam uma certa repulsa, quando me viam, ao longe, desenterrá-las, deixando-as pulsar em espirais telúricos nas palmas das mãos, para logo em seguida devolvê-las seguras às suas moradas. 
Lembro-me ainda quando vi um pequeno escorpião e me inclinei sobre o mesmo, fitando-o face a face com seu ferrão e com seu pequeno corpo negro e imóvel, indomável e cheio de dignidade. Conversei com ele e dando-lhe um nome científico e outro de amigo, por estar ali disponível para uma troca entre o humano e o selvagem. Claro, afinal eu o tinha descoberto, num terreno baldio, meio úmido, cheio de lixo e cacos de telhas, habitat desses seres antigos, logo, tínhamos estabelecido um mudo e breve contrato de amizade, o que nos permitia a compreensão.
Havia também as aranhas que eu delicadamente alimentava com pequenos cadáveres de baratas caseiras, caçadas com precisão felina. As aracnídeas tomaram conta de um espaço entre a fresta detrás da porta e a parede do banheiro, em suas frágeis, quase translúcidas teias, teciam sua casa, pacientemente, com suas múltiplas e amareladas pernas, sempre a trabalhar. Encantava-me seu primor, a perfeição daquele padrão mágico, alquímico, imersas sempre em seu silencioso mundo de aranha. Elas tinham nomes convencionais, dados por mim, como Maria, Laura, Joana, etc. E eu sabia distingui-las entre si, apesar de qualquer ser desavisado encontrar em todas tamanha semelhança que chamaria a minha precisão de imaginação infantil, fértil demais. O mundo profundo, vasto, encantado e calado desses pequenos animais, me despertava para o meu próprio mundo e me tornava mais próxima de mim mesma, de solidão de criança. Aqueles foram meus melhores e primeiros amigos, com quem mais troquei e aprendi, pequenos seres dos quais cuidei, alimentei e cultuei seus corpos de queratina em meu universo de gastrópode-menina.

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