"Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:
- Quem é?
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
- Quem é você? perguntou trêmula.
- Vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! gritou.
- O que importa é que você está me sentindo.
E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.
- Como é que você se chama? perguntou com medo.
- Pouco importa.
- Mas quero chamar seu nome!
- Chame-me de Ixtlan.
Eles se entediam em sânscrito. Seu contato era frio com o de uma lagartixa, dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada."
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:
- Quem é?
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
- Quem é você? perguntou trêmula.
- Vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! gritou.
- O que importa é que você está me sentindo.
E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico.
- Como é que você se chama? perguntou com medo.
- Pouco importa.
- Mas quero chamar seu nome!
- Chame-me de Ixtlan.
Eles se entediam em sânscrito. Seu contato era frio com o de uma lagartixa, dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada."
(Clarice Lispector, Via Crucis do Corpo, trecho de Miss Algrave, p.17)
Esse é um trecho icônico do conto Miss Algrave, de Clarice Lispector, contido na obra Via Crucis do Corpo. E quem seria essa moça que vivencia tamanha experiência excentricamente sensorial e inexplicável com uma figura emblemática, sombria e profunda? Eles se compreendiam em Sâncrito. E a protagonista era uma pudica, recatada e mesmo alcoviteira insuportável na pacata cidade na qual vivia. Levava uma vida medíocre, não se permita prazeres nem mesmo quaisquer tipos de luxos ou extravagâncias, julgava e condenava a todos, eram também os outros uns hipócritas mesmo.
Como você se chama? Sabemos que Saturno é um planeta
que compõe nosso tão conhecido (ou pelo menos muitos acreditam nessa premissa)
sistema solar. É muito conhecido por seus belos anéis, constituídos por poeira
e gelo. Também foi considerado, ao longo de diversos séculos, o planeta mais
frio e distante do Sol. E o mito de Saturno? Jovem Deus, filho libertário e inconformado
com a tirania de seu pai, o Deus Urano, resolve castrá-lo e destroná-lo a fim
de que se inicie a denominada pelos romanos, como Era de Ouro de sua História.
Porém o poder corrompe a todos, quando não compartilhado, até mesmo aos mais pretensos
entusiastas e igualitários. E os jovens também envelhecem, endurecem, enrijecem
e não querem que seu trono fique vacante, não percebem quando, muitas vezes,
sua morada diurna não mais existe e agora o inverno de sua morada noturna é tão
somente o que lhes resta. Alguns ambicionam ser seu mais doce cetro como o
centro do universo e sua palavra como um dom a ser escutado e obedecido por
todos os outros seres viventes seja das esferas celestes, terrenas e ctônicas. Porém
Saturno não escapa de seu destino e a profecia se cumpre: este é destronado e
aprisionado por seu filho, Júpiter, aquele que por engano, não conseguiu
devorar.
Vim de Saturno para amar você. Mas o ato sexual
com essa criatura estranha, sem gênero, de aparência cruel, fria e provocadora,
também excita, amedronta e fascina. Ela pulsa vida e morte, ela pulsa sexo. Ela
pulsa o seu desejo. Ela pulsa o meu desejo. O que importa é que você está me
sentindo. Sua cabeça repleta de serpentes pode ser interpretada, em primeiro
momento, como uma clara alusão ao falo masculino, mas se analisarmos a serpente
com mais calma, está associada em nossa tradição judaico-cristã, à sedução e ao
pecado incentivado ativamente pela mulher, pelo desejo feminino, restrito,
calado, cassado e ainda punido. Prove do fruto proibido. E sentia-o mesmo. Teve
um frisson eletrônico.
Chame-me de Ixtlan. Seria ele/ela a deificação
do desejo animalesco, profundo e desconhecido da protagonista? Seu contato é
frio, mas intenso a ponto de revirar com a vidinha da nossa pobre moça beata.
Agora ela é puta. O símbolo máximo da queda que uma fêmea humana pode chegar. Não
há redenção na prostituição, ela é uma marginal e seu corpo e sua alma
queimarão em perdição, dor e exploração. E quanto mais próxima do fundo poço,
mais se permite sentir, desfrutar, gozar e uma nova faceta se mostra a ela.
Ambígua experiência, assim como toda tragédia aos moldes dos gregos antigos. O algoz
é vítima também. O manto que cobria seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era
ouro mau e púrpura coagulada. Sangue da virgem que é deusa, da puta que é
santa. Lavemos seus pés com nossos cabelos ou com aquilo que ainda nos restar de
sombras, pureza e luxúria.
A cada texto seu que leio,fico comovido com sua sensibilidade, seu repertório interno,sua psique. Você é esplêndida!
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