quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Pugilismo

Sempre gostei de boxe, mesmo quando não tinha consciência de verbalizar esse gosto através da letra grafada. Mas como se gosta de uma sucessão de socos sob a forma de arte, de esquiva forte, imperfeita, calculada, matematizada na linguagem do corpo transpirável? Sabe-se que ao levar o último soco numa briga de escola, daqueles que doem de verdade, mas não possuem força o suficiente para deixar vestígios sobre a pele, levei um gancho. Um gancho é um soco que te desestabiliza, você perde sua noção, por milímetros do espaço-tempo, do segundo que te faz ter um nome, um ideal, uma grafada palavra de metal entre os dedos. Esses motivos se modificam, como um papel de parede florido em tons de verde e marrom e magenta na parede da casa da vizinha da avó da tua prima de segundo grau que faz uns bolinhos de chuva deliciosos, mesmo com as mãos calejadas, mesmo sem nunca haver sequer cogitado dar um soco em quem quer que a humilhasse. Essa é a brincadeira de esquiva do cotidiano, que faz a chuva e o sol terem uma casa de teto de vidro nos olhos de estrela de quem foi socado com destreza, mas talvez sem muita paixão. Para que haja manchas roxas é necessário que antes tivesse o vermelho, não há outro modo, ao meu ver. Este é outro elemento forte na arte do nocaute, além da esquiva e dos nós nos dedos de papel-metal: (pois flexibilidade não se faz somente com a língua quando esta é sabida na afiada corda) a chamada habilidade-paixão. Há de haver paixão no vermelho do alvo, no sangue que pontua com encruzilhadas sanguíneas e muito finas o branco que envolve a íris escura. Há de haver paixão na guerra do corpo, no novo papel de parede, delicado e mais floral, que cobrirá o arroxeado do soco que ficou na ausência da antiga senhora que escondera cartas de amor (sem erros ortográficos, me desculpe pelos que aqui cometo) nos papéis suados por um amarelo quase celeste, as cartas acho que datam de 1937. Mais um ano de muitos socos, golpes, ganchos, esquivas, esquifes e outros melindres que não podem fazer parte de quem caleja os dedos nos murais de um antigo cemitério judeu no clandestino de uma boca quase sem saliva. E onde há o boxe nisso tudo? Pois te digo sem pensar duas vezes num mesmo palmo ou num mesmo plano de instante: está em todo o roxo, está nas cartas amarelas, está na senhora vizinha, está no soco que levei quando tinha 14 anos, está na violência de permanecer viva, contudo, e naqueles que cuspiram uma nuvem de musicais venenos que, se bem dosados, curam também, me disseram. E eu pude provar através de diversas sequências que compõe o que nomeamos de outra maneira como 365 dias, ou seja, um ano. O soco, o cruzado, o cruzeiro do navegar é preciso, o cruzeiro das almas, está numa cápsula que macula o que foi dito por diversos medos de caminhar entre o cruzamento, entre o vazamento do sangue inteiro que se derramou um pouco, junto ao açúcar de confeiteiro, pelo cantinho da boca, naquele ponto onde os olhos, aqueles que viram estrelas e vagearam por um tempo, não viram, não notaram. O sangue de verdade é mais escuro do que se parece nos filmes, eu não consigo nomear as cores tão bem, talvez eu devesse, já que resolvi revolver as palavras como se grama fossem. E a cultura da grama não vale menos por isso, disso também sei. Agora as marcas estão tomando um outro rumo no corpo que se empenha em buscar o menos do pior daquilo que o cruzado boxe-trote trouxe: aquele do verde quase amarelecido, envelhecido como as cartas de 1937 ou mesmo de antes. O boxe é também uma dança, sempre gostei de boxe.

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