Uma adaga com o punho incrustado de pedras preciosas
perfura um coração preso numa tela de arame. O sangue de tonalidade escura,
levemente fresco e odor de ferrugem, penetra papilas e pupilas. É a vida que escureceu-se num beco sem sabor
e apodreceu sob um cinza céu acima de nossas cabeças num domingo ao cair da
tarde não percebida. Um velho gato me disse: “é bom ter você de volta, senti
saudades”.
Qual foi a última que fui tão longe? Pensei que dessa vez não
voltaria, fica cada vez mais difícil voltar e encontrar as notas certas para
cobrir aquela frase musical ou aquele rabisco que prometi a você ou mesmo para
retornar e comer um prato de comida, tomar um banho, vestir roupas limpas, dar
um jeito no apartamento. As palavras se tornam cotidianamente um arame sabor
ferrugem em meus dentes, é como se houvesse uma faca presa entre minha arcada
dentária.
Hoje eu realmente fui muito longe, as imagens do gato branco e preto
de minha infância, essa herança genética preenchida de medo, a imagem em
looping na cabeça de um sonho sobre a degola de uma mulher que jurei vingança (mas
antes de tudo um abraço e um riso sardônico), o arame de coração humano e ainda
vermelho vivo, acabava de sair do corpo de alguém, as pedras eram de um tom
violáceo que davam à peça cardíaca um aspecto de putrefato antes do tempo.
O
coração corpóreo e incrustado começou a cercar-se de pássaros negros que
dançavam em círculos leves, ritmados, em seu entorno. Olhei para o alto e
observei por cerca de treze minutos exatos os movimentos destes e das nuvens
que se cobriam de poeiras e camadas de várias tonalidades de branco. Como esses
animais sobreviviam, eles eram uma dança para o meu tédio concêntrico. Resolvi
fechar as janelas, escovar os dentes e me esqueci do coração momentaneamente.
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