sábado, 7 de janeiro de 2017

Arame farpado

Uma adaga com o punho incrustado de pedras preciosas perfura um coração preso numa tela de arame. O sangue de tonalidade escura, levemente fresco e odor de ferrugem, penetra papilas e pupilas.  É a vida que escureceu-se num beco sem sabor e apodreceu sob um cinza céu acima de nossas cabeças num domingo ao cair da tarde não percebida. Um velho gato me disse: “é bom ter você de volta, senti saudades”. 

Qual foi a última que fui tão longe? Pensei que dessa vez não voltaria, fica cada vez mais difícil voltar e encontrar as notas certas para cobrir aquela frase musical ou aquele rabisco que prometi a você ou mesmo para retornar e comer um prato de comida, tomar um banho, vestir roupas limpas, dar um jeito no apartamento. As palavras se tornam cotidianamente um arame sabor ferrugem em meus dentes, é como se houvesse uma faca presa entre minha arcada dentária. 

Hoje eu realmente fui muito longe, as imagens do gato branco e preto de minha infância, essa herança genética preenchida de medo, a imagem em looping na cabeça de um sonho sobre a degola de uma mulher que jurei vingança (mas antes de tudo um abraço e um riso sardônico), o arame de coração humano e ainda vermelho vivo, acabava de sair do corpo de alguém, as pedras eram de um tom violáceo que davam à peça cardíaca um aspecto de putrefato antes do tempo. 

O coração corpóreo e incrustado começou a cercar-se de pássaros negros que dançavam em círculos leves, ritmados, em seu entorno. Olhei para o alto e observei por cerca de treze minutos exatos os movimentos destes e das nuvens que se cobriam de poeiras e camadas de várias tonalidades de branco. Como esses animais sobreviviam, eles eram uma dança para o meu tédio concêntrico. Resolvi fechar as janelas, escovar os dentes e me esqueci do coração momentaneamente. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário